quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Amuleto de Ogum (1974), de Nelson Pereira dos Santos


Uma provável impressão que se tem é a de que estamos face ao filme mais auto-reflexivo de NPS. Podemos confundi-lo à primeira vista com alguma empreitada experimental clichê que busca referências aqui e ali; porém, o que NPS relê é tão-somente fragmentos de sua obra, enviesando uma autocrítica dimensionada através do uso desenfreado da ironia. Não que a ironia seja dado novo a partir deste filme, mas se tínhamos nos filmes anteriores a ironia sutil, quase invisível, agora ela chega ao paroxismo filtrando signos com os quais NPS trabalha muito bem.

O que NPS investe sobre os panos de fundo do candomblé e dos caracteres do filme policial é a intenção de delinear um banditismo kitsch acontecendo no cenário urbano do Nordeste. Cangaceirismo moderno, fora-de-época, mas nem por isso visto com desconfiança ou apego; se vemos estes novos cabras cometendo atrocidades usando paletós furta-cores, não podemos assim depreender qualquer coisa senão disparates que atingem efeitos dos quais curiosamente NPS parece ser consciente.

Por exemplo, mata-se muito em O Amuleto - um grande bangue-bangue; contudo, a estratégia não parece residir na atenção ao choque causado pela violência, porque antes reside na jocosidade das posições e situações em que se encontram as vítimas e os bandidos, nas fisionomias grotescas, nas palavras ditas antes da morte repentina, etc. O filme quer divertir, e bem o faz subvertendo uma série de discursos que ao menos até o final da década anterior indisporiam NPS com relação aos seus amigos do Cinema Novo. A saber, as questões de classe, posição do intelectual no processo político, alegoria e desencantamento são dados que, se aqui existem, moram no mesmo plano e sob a forma residual.

A montagem das cenas de perseguição e morte é brilhante, pois exorcizam absolutamente o humanismo que NPS incutia na representação até então e inserem um joguete com o seu já sólido legado, que consegue ser gritado na seqüência em que o herói, Gabriel – contemplado com o poder demiúrgico do corpo fechado -, atira no pescoço de um homem enquanto assovia A Voz do Morro. Nessas ocasiões, o que é sublinhado é mero trejeito e circunstância, quase sempre coroada com a leitura em grupo que o bando faz das manchetes dos assassinatos que comete, seguido de comentários que encerram boas piadas. E NPS consegue, ainda assim e doutra forma, continuar sendo o exato cronista do subúrbio.

Portanto, é da atmosfera então criada que surte o caminho da auto-reflexividade. E o que é isso? Talvez a atitude livre e descompromissada de um cineasta agora totêmico, que quer lidar com o circo da mesma maneira que suas personagens lidam com a morte, “dando na veneta”, para citar aquele que acaba revelando-se o único e verdadeiro detentor do saber e do poder no filme: mais uma vez, o repentista.

Um comentário:

mayná quintana disse...

gostei bastante do texto, marcos. tem momentos muito precisos, que já me fazem acreditar no filme (e que casam com a suspeita que tenho de nelson pereira)

mas não dá pra comentar muito de algo que não conheço. é uma pena, fiquei com vontade de ver.

(teu texto está mais mais solto, é bom. gosto da sensação de que a análise do filme parte do filme e não de fora dele)

beijos.