quarta-feira, 14 de março de 2007

Desajuste Social (Accattone, 1961), de Pier Paolo Pasolini


Em seu primeiro filme, ao contrário dos primeiros neo-realistas, Pasolini entende esta escola cinematográfica como um gênero, e pode entendê-la assim porque tal objeto corresponde a um período já estanque na História do Cinema. Ele encontra as debilidades deste "gênero" e ainda assim as reproduz fielmente, pois em si a maior vontade é fazer um filme neo-realista. É como se soasse injusto que, para alguém que tenha pensado tanto o cinema italiano, não fosse possível ter a oportunidade de realizar sequer um filme arraigado em questões tão marcantes em sua história, apenas por correr o risco de denotar anacronismo.

Mas anacronismo à primeira vista, pois a consciência sobre o fato de estar lidando com uma fórmula, digamos, consagrada, o obriga a ensaiar, mesmo que sutilmente, novas variações. Esta consciência pode estar ligada à possibilidade, naquela altura, de Pasolini reconhecer o neo-realismo, no nível historiográfico, como estado intermediário entre as rubricas "cinema clássico" e "cinema moderno" - em suma, a "crise da imagem-ação", nas posteriores palavras de Deleuze; assim como poder pensar o movimento no instante em que este perece - ou evolui - à luz dos novos tempos (os cinemas novos da Guerra Fria).


A verdade é que isto não recebeu continuidade em sua carreira, e Pasolini, nos próximos filmes, resolveu se imbuir até as últimas conseqüencias das liberdades do autor cinematográfico, algo ainda novo naquela conjuntura. Promoveu sua marca, enfim. E em Accattone, vemos alguns caracteres desta marca em estado embrionário e obscuro, coisas que iriam se ampliar nas pautas de suas polêmicas até a morte, em 1975. Cito dois: o tema da homossexualidade (Accattone, o herói, bêbado, com a cabeça no colo de um amigo, em raro plano longo do filme) e da morbidez buñueliana ao lidar com a iconografia cristã: contracampo final, após constatarmos a morte trágica do herói - lei cabal no código neo-realista -, um vagabundo laico faz um langoroso sinal-da-cruz, desconcertando a gravidade da cena. Fine.

terça-feira, 6 de março de 2007

Que Viva México! (Da Zdravstvuiet, Meksika!, 1931), de Sergei Eisenstein


É interessante reparar Que Viva México! como mais um expoente de uma tendência na obra de Eisenstein posterior a Outubro (1927) e iniciada em A Linha Geral (1928), em que o ideal da montagem dialética é consoante a um aspecto dotado de um alto teor lírico, o que rescalda também em planos longos, até pouco tempo malditos pelo cineasta. Uma câmara mais calma, que divide a sua antiga função com uma nova, a de observar. Isto pode ser fácil de compreender, se lembramos de uma das polêmicas que lhe envolveram devido a notabilidade mundial angariada após Potemkin (1925): o debate bastante polarizado entre Bela Balazs e Eisenstein.

O teórico húngaro defendia a busca de mecanismos que revelassem a subjetividade através da objetividade da fotografia dentro de um único plano, conseguida, claro, se este último estivesse devidamente contextualizado na seqüência montada; o russo, por sua vez, concordava com ele no aspecto do primado da montagem, mas preferia propor uma significação através da dialética entre planos, a montagem intelectual. Os close-ups da jovem Concepción ou os longos planos da preparação das vestes de toureiro mostram então um Eisenstein que se deixou interferir neste sentido. O filme será assim, apazigüe, até que a ferida da Revolução seja tocada.

No início, o prólogo, vemos imagens estáticas das pirâmides do México antigo e de suas estátuas deterioradas, erigidas pela nação americana mais desenvolvida da pré-colonização. Aqui já temos a noção de que a história do México até à Revolução de 1910 será contada desde o mais longínquo início. Há uma enumeração de aspectos das edificações, enquadradas junto a mexicanos nativos, fenotipicamente puros, descentes diretos das tribos que ali habitavam. O rigor que tange as composições cria uma esfera sensorial que nos distancia através do êxtase. A história aqui é operística e o aspecto da modernidade é ausente – como o será também no restante do filme. Enquanto isso, uma voz over lê o texto escrito por Eisenstein: “O tempo no prólogo é eterno. Tudo o que acontece aqui pode ter acontecido há vinte anos atrás, ou há mil anos atrás. Pedra. Deuses. E o Povo. [...] em um lugar onde o passado domina o presente”. Com estes caracteres, o filme promove a sua tônica que faz parecer que a história é contada como se estivesse acontecendo no momento da documentação. E o fascínio vem do fato de nada ser propriamente fictício. Os cenários são reais e os figurantes que nele vivem são nativos.


A partir daí o filme progride episodicamente, respeitando o ideal de verticalidade da representação construtivista de Eisenstein, referenciando também outras épocas e regiões do país, concernentes a períodos posteriores da História, por exemplo: temos o cotidiano das cantadoras de Sandunga e o casamento de uma delas; saltando para outro momento, para lembrar a conquista espanhola, temos uma longa seqüência de tourada, na íntegra, a primeira filmada no México. Nestes retratos, todas as ações que vemos os figurantes levar frente à câmara são meras execuções de ritos folclóricos e religiosos, absolutamente. Isto retira das pessoas que vemos qualquer possibilidade de subjetivação, já que estas fazem tudo automaticamente, levadas apenas pelo motivo ritualístico, lacuna talvez compensada pela descrição que Eisenstein as entrega.

O cineasta, a quem a xenofobia não interessa, investiga os cânones da cultura popular, e ao mostrá-los sob diferentes perspectivas e variações, promove uma reiteração que, aliado ao estupefante tratamento dado pela fotografia de Eduard Tissé, busca valorizar o povo em questão através do legado cultural que construiu em milênios. Os ideais virtuosos de humildade e trabalho são então atribuídos a eles por tabela. Conseguido isto, é chegada a hora de se instaurar o contraponto vilanesco dos colonizadores - mote maior da causa revolucionária - para então representar, numa empreitada alegorista, o que interessa a Eisenstein esclarecer no espectro da História.

Assim como em Potemkin ou em A Greve (1924), aqui, mais uma vez, a Revolução não é representada através da reprodução de acontecimentos históricos datados e grandiloqüentes (Griffith). Se em Potemkin o que gera a revolta é simplesmente a displicência do capitão do encouraçado com relação ao pedaço de carne putrefeita que a cozinha destinou para alimentar a tripulação - o que reverbera depois em atitudes mais violentas -, em Qué Viva México! é o abuso sexual da namoradinha de um criado, por parte de um hóspede do proprietário, que ensejará uma movimentação rebelde em toda a vassalagem.

A seqüência que mostra a rebelião é quem quebra o paradigma da ponderação dos planos pelo lirismo. As lentes não mais se preocupam com os dados culturais do México pré-revolucionário, e os longos e estonteantes planos dão lugar, finalmente, aos velhos faux raccords que consagraram seu autor. A evocação das classes dominantes no filme se faz lançada a partir da iconografia de uma imagem de Porfírio Diaz, para qual um dos convidados de uma festa do proprietário da fazenda Tetlapayac faz honrarias. Os gestos dele e dos demais convidados são grotescos e ganham a mesma proporção alegórica que é dada por Eisenstein, em toda a sua obra, às personagens oriundas deste estamento social.



É após uma batalha armada, onde o proletariado perde e o seu líder mais dois rebeldes são enterrados até a cabeça - cada uma pisoteada por cavalos assustados -, que a fita acaba, interrompida por desentendimentos entre Eisenstein e o roteirista hollywoodiano Upton Sinclair, que havia topado financiar o projeto. A obra, como diz o montador Grigory Alexandrov na apresentação do filme, "pertence ao mundo".