terça-feira, 31 de julho de 2007

Morre Antonioni, aos 94

Liguei o computador para falar de Bergman e, ao acessar o noticiário, me dei conta de uma linda coincidência. Sendo assim, creio que seja difícil discorrer a respeito de dois objetos poderosos que resolveram se fundir apenas no dia da morte; esta, pela sua força, de alguma forma estranha os unirá.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Da "trilogia da incomunicabilidade", de Michelangelo Antonioni


Revendo ultimamente medalhões do cinema moderno, por ocasião das sessões do cineclube, me apeguei muito a algo que percebi a partir da cena final de A Aventura (1960), do Antonioni. Naquilo que chamaram de "trilogia da incomunicabilidade", observei uma espécie de progressão na elaboração dos tempos mortos, de tímida neste filme ao escancaramento em L'eclissé (1962).

Execrando o intermediário La Notte (1961) da comparação, me chamou a atenção o rigor com que Antonioni filma pedras e o nível emblemático que carrega a escolha deste cenário para o filme; mas isso é apenas sintoma. O mais nítido acerca desse desejo do vazio é ver o casal protagonista no final de A Aventura, resignado diante de todas as suas impossibilidades, a contemplar o cenário em que viveram toda a imcompletude figurada até então; e depois, ver, no final de L'eclissé, o desejo do mesmo vazio, contudo agora potencializado nas panorâmicas impassíveis do cenário em que o outro casal protagonista viveu a imcompletude, entretanto sem os mesmos em quadro - talvez porque desconsiderados pela câmara. Curioso; afinal, agora a insistência em negar a existência - ou evidenciar tal negação - da válvula propulsora do drama parece misteriosamente justificada e esclarecida.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Amuleto de Ogum (1974), de Nelson Pereira dos Santos


Uma provável impressão que se tem é a de que estamos face ao filme mais auto-reflexivo de NPS. Podemos confundi-lo à primeira vista com alguma empreitada experimental clichê que busca referências aqui e ali; porém, o que NPS relê é tão-somente fragmentos de sua obra, enviesando uma autocrítica dimensionada através do uso desenfreado da ironia. Não que a ironia seja dado novo a partir deste filme, mas se tínhamos nos filmes anteriores a ironia sutil, quase invisível, agora ela chega ao paroxismo filtrando signos com os quais NPS trabalha muito bem.

O que NPS investe sobre os panos de fundo do candomblé e dos caracteres do filme policial é a intenção de delinear um banditismo kitsch acontecendo no cenário urbano do Nordeste. Cangaceirismo moderno, fora-de-época, mas nem por isso visto com desconfiança ou apego; se vemos estes novos cabras cometendo atrocidades usando paletós furta-cores, não podemos assim depreender qualquer coisa senão disparates que atingem efeitos dos quais curiosamente NPS parece ser consciente.

Por exemplo, mata-se muito em O Amuleto - um grande bangue-bangue; contudo, a estratégia não parece residir na atenção ao choque causado pela violência, porque antes reside na jocosidade das posições e situações em que se encontram as vítimas e os bandidos, nas fisionomias grotescas, nas palavras ditas antes da morte repentina, etc. O filme quer divertir, e bem o faz subvertendo uma série de discursos que ao menos até o final da década anterior indisporiam NPS com relação aos seus amigos do Cinema Novo. A saber, as questões de classe, posição do intelectual no processo político, alegoria e desencantamento são dados que, se aqui existem, moram no mesmo plano e sob a forma residual.

A montagem das cenas de perseguição e morte é brilhante, pois exorcizam absolutamente o humanismo que NPS incutia na representação até então e inserem um joguete com o seu já sólido legado, que consegue ser gritado na seqüência em que o herói, Gabriel – contemplado com o poder demiúrgico do corpo fechado -, atira no pescoço de um homem enquanto assovia A Voz do Morro. Nessas ocasiões, o que é sublinhado é mero trejeito e circunstância, quase sempre coroada com a leitura em grupo que o bando faz das manchetes dos assassinatos que comete, seguido de comentários que encerram boas piadas. E NPS consegue, ainda assim e doutra forma, continuar sendo o exato cronista do subúrbio.

Portanto, é da atmosfera então criada que surte o caminho da auto-reflexividade. E o que é isso? Talvez a atitude livre e descompromissada de um cineasta agora totêmico, que quer lidar com o circo da mesma maneira que suas personagens lidam com a morte, “dando na veneta”, para citar aquele que acaba revelando-se o único e verdadeiro detentor do saber e do poder no filme: mais uma vez, o repentista.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Desajuste Social (Accattone, 1961), de Pier Paolo Pasolini


Em seu primeiro filme, ao contrário dos primeiros neo-realistas, Pasolini entende esta escola cinematográfica como um gênero, e pode entendê-la assim porque tal objeto corresponde a um período já estanque na História do Cinema. Ele encontra as debilidades deste "gênero" e ainda assim as reproduz fielmente, pois em si a maior vontade é fazer um filme neo-realista. É como se soasse injusto que, para alguém que tenha pensado tanto o cinema italiano, não fosse possível ter a oportunidade de realizar sequer um filme arraigado em questões tão marcantes em sua história, apenas por correr o risco de denotar anacronismo.

Mas anacronismo à primeira vista, pois a consciência sobre o fato de estar lidando com uma fórmula, digamos, consagrada, o obriga a ensaiar, mesmo que sutilmente, novas variações. Esta consciência pode estar ligada à possibilidade, naquela altura, de Pasolini reconhecer o neo-realismo, no nível historiográfico, como estado intermediário entre as rubricas "cinema clássico" e "cinema moderno" - em suma, a "crise da imagem-ação", nas posteriores palavras de Deleuze; assim como poder pensar o movimento no instante em que este perece - ou evolui - à luz dos novos tempos (os cinemas novos da Guerra Fria).


A verdade é que isto não recebeu continuidade em sua carreira, e Pasolini, nos próximos filmes, resolveu se imbuir até as últimas conseqüencias das liberdades do autor cinematográfico, algo ainda novo naquela conjuntura. Promoveu sua marca, enfim. E em Accattone, vemos alguns caracteres desta marca em estado embrionário e obscuro, coisas que iriam se ampliar nas pautas de suas polêmicas até a morte, em 1975. Cito dois: o tema da homossexualidade (Accattone, o herói, bêbado, com a cabeça no colo de um amigo, em raro plano longo do filme) e da morbidez buñueliana ao lidar com a iconografia cristã: contracampo final, após constatarmos a morte trágica do herói - lei cabal no código neo-realista -, um vagabundo laico faz um langoroso sinal-da-cruz, desconcertando a gravidade da cena. Fine.

terça-feira, 6 de março de 2007

Que Viva México! (Da Zdravstvuiet, Meksika!, 1931), de Sergei Eisenstein


É interessante reparar Que Viva México! como mais um expoente de uma tendência na obra de Eisenstein posterior a Outubro (1927) e iniciada em A Linha Geral (1928), em que o ideal da montagem dialética é consoante a um aspecto dotado de um alto teor lírico, o que rescalda também em planos longos, até pouco tempo malditos pelo cineasta. Uma câmara mais calma, que divide a sua antiga função com uma nova, a de observar. Isto pode ser fácil de compreender, se lembramos de uma das polêmicas que lhe envolveram devido a notabilidade mundial angariada após Potemkin (1925): o debate bastante polarizado entre Bela Balazs e Eisenstein.

O teórico húngaro defendia a busca de mecanismos que revelassem a subjetividade através da objetividade da fotografia dentro de um único plano, conseguida, claro, se este último estivesse devidamente contextualizado na seqüência montada; o russo, por sua vez, concordava com ele no aspecto do primado da montagem, mas preferia propor uma significação através da dialética entre planos, a montagem intelectual. Os close-ups da jovem Concepción ou os longos planos da preparação das vestes de toureiro mostram então um Eisenstein que se deixou interferir neste sentido. O filme será assim, apazigüe, até que a ferida da Revolução seja tocada.

No início, o prólogo, vemos imagens estáticas das pirâmides do México antigo e de suas estátuas deterioradas, erigidas pela nação americana mais desenvolvida da pré-colonização. Aqui já temos a noção de que a história do México até à Revolução de 1910 será contada desde o mais longínquo início. Há uma enumeração de aspectos das edificações, enquadradas junto a mexicanos nativos, fenotipicamente puros, descentes diretos das tribos que ali habitavam. O rigor que tange as composições cria uma esfera sensorial que nos distancia através do êxtase. A história aqui é operística e o aspecto da modernidade é ausente – como o será também no restante do filme. Enquanto isso, uma voz over lê o texto escrito por Eisenstein: “O tempo no prólogo é eterno. Tudo o que acontece aqui pode ter acontecido há vinte anos atrás, ou há mil anos atrás. Pedra. Deuses. E o Povo. [...] em um lugar onde o passado domina o presente”. Com estes caracteres, o filme promove a sua tônica que faz parecer que a história é contada como se estivesse acontecendo no momento da documentação. E o fascínio vem do fato de nada ser propriamente fictício. Os cenários são reais e os figurantes que nele vivem são nativos.


A partir daí o filme progride episodicamente, respeitando o ideal de verticalidade da representação construtivista de Eisenstein, referenciando também outras épocas e regiões do país, concernentes a períodos posteriores da História, por exemplo: temos o cotidiano das cantadoras de Sandunga e o casamento de uma delas; saltando para outro momento, para lembrar a conquista espanhola, temos uma longa seqüência de tourada, na íntegra, a primeira filmada no México. Nestes retratos, todas as ações que vemos os figurantes levar frente à câmara são meras execuções de ritos folclóricos e religiosos, absolutamente. Isto retira das pessoas que vemos qualquer possibilidade de subjetivação, já que estas fazem tudo automaticamente, levadas apenas pelo motivo ritualístico, lacuna talvez compensada pela descrição que Eisenstein as entrega.

O cineasta, a quem a xenofobia não interessa, investiga os cânones da cultura popular, e ao mostrá-los sob diferentes perspectivas e variações, promove uma reiteração que, aliado ao estupefante tratamento dado pela fotografia de Eduard Tissé, busca valorizar o povo em questão através do legado cultural que construiu em milênios. Os ideais virtuosos de humildade e trabalho são então atribuídos a eles por tabela. Conseguido isto, é chegada a hora de se instaurar o contraponto vilanesco dos colonizadores - mote maior da causa revolucionária - para então representar, numa empreitada alegorista, o que interessa a Eisenstein esclarecer no espectro da História.

Assim como em Potemkin ou em A Greve (1924), aqui, mais uma vez, a Revolução não é representada através da reprodução de acontecimentos históricos datados e grandiloqüentes (Griffith). Se em Potemkin o que gera a revolta é simplesmente a displicência do capitão do encouraçado com relação ao pedaço de carne putrefeita que a cozinha destinou para alimentar a tripulação - o que reverbera depois em atitudes mais violentas -, em Qué Viva México! é o abuso sexual da namoradinha de um criado, por parte de um hóspede do proprietário, que ensejará uma movimentação rebelde em toda a vassalagem.

A seqüência que mostra a rebelião é quem quebra o paradigma da ponderação dos planos pelo lirismo. As lentes não mais se preocupam com os dados culturais do México pré-revolucionário, e os longos e estonteantes planos dão lugar, finalmente, aos velhos faux raccords que consagraram seu autor. A evocação das classes dominantes no filme se faz lançada a partir da iconografia de uma imagem de Porfírio Diaz, para qual um dos convidados de uma festa do proprietário da fazenda Tetlapayac faz honrarias. Os gestos dele e dos demais convidados são grotescos e ganham a mesma proporção alegórica que é dada por Eisenstein, em toda a sua obra, às personagens oriundas deste estamento social.



É após uma batalha armada, onde o proletariado perde e o seu líder mais dois rebeldes são enterrados até a cabeça - cada uma pisoteada por cavalos assustados -, que a fita acaba, interrompida por desentendimentos entre Eisenstein e o roteirista hollywoodiano Upton Sinclair, que havia topado financiar o projeto. A obra, como diz o montador Grigory Alexandrov na apresentação do filme, "pertence ao mundo".