quarta-feira, 30 de maio de 2007

Da "trilogia da incomunicabilidade", de Michelangelo Antonioni


Revendo ultimamente medalhões do cinema moderno, por ocasião das sessões do cineclube, me apeguei muito a algo que percebi a partir da cena final de A Aventura (1960), do Antonioni. Naquilo que chamaram de "trilogia da incomunicabilidade", observei uma espécie de progressão na elaboração dos tempos mortos, de tímida neste filme ao escancaramento em L'eclissé (1962).

Execrando o intermediário La Notte (1961) da comparação, me chamou a atenção o rigor com que Antonioni filma pedras e o nível emblemático que carrega a escolha deste cenário para o filme; mas isso é apenas sintoma. O mais nítido acerca desse desejo do vazio é ver o casal protagonista no final de A Aventura, resignado diante de todas as suas impossibilidades, a contemplar o cenário em que viveram toda a imcompletude figurada até então; e depois, ver, no final de L'eclissé, o desejo do mesmo vazio, contudo agora potencializado nas panorâmicas impassíveis do cenário em que o outro casal protagonista viveu a imcompletude, entretanto sem os mesmos em quadro - talvez porque desconsiderados pela câmara. Curioso; afinal, agora a insistência em negar a existência - ou evidenciar tal negação - da válvula propulsora do drama parece misteriosamente justificada e esclarecida.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Amuleto de Ogum (1974), de Nelson Pereira dos Santos


Uma provável impressão que se tem é a de que estamos face ao filme mais auto-reflexivo de NPS. Podemos confundi-lo à primeira vista com alguma empreitada experimental clichê que busca referências aqui e ali; porém, o que NPS relê é tão-somente fragmentos de sua obra, enviesando uma autocrítica dimensionada através do uso desenfreado da ironia. Não que a ironia seja dado novo a partir deste filme, mas se tínhamos nos filmes anteriores a ironia sutil, quase invisível, agora ela chega ao paroxismo filtrando signos com os quais NPS trabalha muito bem.

O que NPS investe sobre os panos de fundo do candomblé e dos caracteres do filme policial é a intenção de delinear um banditismo kitsch acontecendo no cenário urbano do Nordeste. Cangaceirismo moderno, fora-de-época, mas nem por isso visto com desconfiança ou apego; se vemos estes novos cabras cometendo atrocidades usando paletós furta-cores, não podemos assim depreender qualquer coisa senão disparates que atingem efeitos dos quais curiosamente NPS parece ser consciente.

Por exemplo, mata-se muito em O Amuleto - um grande bangue-bangue; contudo, a estratégia não parece residir na atenção ao choque causado pela violência, porque antes reside na jocosidade das posições e situações em que se encontram as vítimas e os bandidos, nas fisionomias grotescas, nas palavras ditas antes da morte repentina, etc. O filme quer divertir, e bem o faz subvertendo uma série de discursos que ao menos até o final da década anterior indisporiam NPS com relação aos seus amigos do Cinema Novo. A saber, as questões de classe, posição do intelectual no processo político, alegoria e desencantamento são dados que, se aqui existem, moram no mesmo plano e sob a forma residual.

A montagem das cenas de perseguição e morte é brilhante, pois exorcizam absolutamente o humanismo que NPS incutia na representação até então e inserem um joguete com o seu já sólido legado, que consegue ser gritado na seqüência em que o herói, Gabriel – contemplado com o poder demiúrgico do corpo fechado -, atira no pescoço de um homem enquanto assovia A Voz do Morro. Nessas ocasiões, o que é sublinhado é mero trejeito e circunstância, quase sempre coroada com a leitura em grupo que o bando faz das manchetes dos assassinatos que comete, seguido de comentários que encerram boas piadas. E NPS consegue, ainda assim e doutra forma, continuar sendo o exato cronista do subúrbio.

Portanto, é da atmosfera então criada que surte o caminho da auto-reflexividade. E o que é isso? Talvez a atitude livre e descompromissada de um cineasta agora totêmico, que quer lidar com o circo da mesma maneira que suas personagens lidam com a morte, “dando na veneta”, para citar aquele que acaba revelando-se o único e verdadeiro detentor do saber e do poder no filme: mais uma vez, o repentista.